quarta-feira, junho 10, 2009

O Bonde (parte 2 de 2)

(continuação)

Um trambulhão do bonde atira as moças uma por cima da outra. Uma senhora velhusca, que dormitava no banco fronteiro, accorda, alarmada. Um velho, que lia um jornal, resmunga alguma coisa que não se ouve. O bonde pára e ouve-se o vôar de uma mosca evadida do açougue proximo. Um homem que apparenta 40 annos, com as mãos cheias de embrulhos, queixa-se da carestia da vida ao visinho, que nunca o vira mas que, decerto conhecia, tambem, a carestia.

- Não sei onde vamos parar com o preço de tudo. O pobre ja não pode, pois nem a casa tem garantida. E os impostos? Cada vez augmentam mais. Imagine que tenho mulher e quatro filhas, e mais a sogra, tia da minha Genoveva. Tenho um pequeno atacado de CRUP. É um inferno!...

E olhou, silenciosamente, para um gato morto que a Limpeza Pública tinha esquecido á porta de uma casa velha. O outro concordou, com um gesto, e fez, tambem, uma cara de soffrimento.

- Ó idiota! Não vê que «tem» uma senhora subindo?

O «idiota» é o motorneiro, que ia dando marcha no carro depois da violenta parada. Trava, de novo, o vehiculo, e o conductor começa a discutir com o homenzinho que reclamou por conta da senhora que ia soffrendo um choque e suas consequencias traumaticas. O homenzinho, que quer conquistar as sympathias do bonde em peso, ameaça dar pancada no conductor. A dama que escapou de cair abana-se, muito vermelha, com uma cara de casa de commodos e de tyrana domestica. O caixeiro, que tem um corpo de Hercules de circo, approxima-se do banco em que está o cavalheiro salvador, enquanto os passageiros se voltam, farejando um escandalo e uma briga. Trocam-se desaforos pesados e, afinal, um soldado de polícia que assistia, displicente, á scena, resolve intervir em nome da Lei. E a Lei apaga os odios nascentes...

- Toca o bonde!

- Espera, homem! Pára o bonde!

É um senhor, que brande no ar um bengalão de junco e que tem, para carregar no vehiculo, a mulher, outra mulhar, e cinco filhos menores. Os passageiros fazem gestos, irritados, de impaciencia, e o conductor berra do alto da plataforma, com uma voz de commando:

- Não ha lugar!

Uma sensação de alivio invade a população ambulante. O motorneiro pisa na campainha, reclamando o sinal de partida. E duas pancadas vibram, afinal, puxadas pelo cordão sujo que a mão do conductor manobra. O bonde arranca, num grande esforço de rodas de aço, e um turbilhão de poeira se alevanta envolvendo tudo num banho secco de calor e de sujo... E o sol cae como uma immensa cataplasma de fogo na face das cousas queimando, calcinando, e arrancando pulverisações de ouro na pedra sórdida das ruas...

[ilustrações: J.Carlos (1884-1950)]

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