Transcrição da crônica de Herilo Neves na Revista CARETA de 14jan1928. (Parte 1). É de se observar a grafia da época.
O BONDE
(Scenas da vida carioca)
O bonde rola, ruidosamente, por sobre os trilhos asperos, mal engraxados como as botas dos homens pobres. Uma nuvem de poeira acompanha o vehiculo, tornando mais sujo e mais triste o conductor, que a todo momento enfia os olhos pelos bancos, farejando rapazes relapsos, mocinhas distrahidas, gordas senhoras sonolentas.
- Faz favor!
E agita no ar um punhado de nickeis, cujo tinido tem por fim acordar as consciencias esquecidas do tostão da passagem. O sol envolve tudo num amplexo de fogo e, no ar, partículas doiradas parecem faúlhas de um incendio enorme. Ha um cansaço immenso em todas as cousas, e a propria terra parece abrir-se num infinito bocejo de tedio. Outros bondes passam em sentido contrario, com um grande rumos de velhos ferros que se chocam. Carroças ferem, com suas rodas de aço, a face rude dos paralellepípedos. Á porta das casas commerciaes empregados em manga de camisas abanam-se com ventarolas de RECLAME e apregôam roupas brancas para senhoras,sapatos a 20$ o par. Um garoto, que pulou para a plataforma do bonde, offerece a sorte grande, que ninguem quer, e faz caretas ao caixeiro do vehículo que ameaça dar-lhe meia duzia de ponta-pés. Como as casas, succedem-se as pessoas, na rua. Uns vão muito apressados, enxugando o suor com uns lenços cheios de manchas de pó. Outros detêm-se, ao passeio,dicutindo negocios, segredando conquistas, invectivando o tempo e o verão inclemente. Odôres succedem-se assignalando ás pituitarias humidas a pharmacia, o estábulo, a venda de galinhas e de fructas. E o bonde rola, por entre pragas do motorneiro que faz tilintar a campainha de aviso, e reclamações dos passageiros que têm pressa em voltar ao trabalho.
- Como é? O bonde sae ou não sae?
- Vae largar! Larga!
Um homenzenho nervoso, com a cara marcada de bexigas, levanta-se para ver o que está detendo a marcha do vehiculo. Foi uma carroça que se atravessou na linha. O carroceiro, entre palavrões, fustiga os míseros burros esgottados; o motorneiro bate, com impaciencia, a campainha do vehiculo, e pescoços curiosos se alongam para fora do bonde inquirindo, escutando, animando a marcha do carro. Os burros, num último esforço, fazem a carroça saltar do trilho. Uma ultima praga e o primeiro arranco do bonde.
No bando da frente, duas collegiaes, vestidas de azul e branco, conversam com animação infantil. Cochichos e sorrisos rapidos se cruzam e se succedem vertiginosamente.
- Vaes á aula, amanhã?
- Eu? Não. Vou dansar hoje na casa da tia Maricota.
- Ha festa, lá?
- E então! Tia Maricota faz annos de casamento. E o Carlito vae...
(continua no próximo post.)
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